Marlus H. Arns de Oliveira
A colaboração premiada já está inserida em nosso ordenamento.
A colaboração premiada sob a luz do novo Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil.
1 Introdução
Atendendo a gentil e honroso convite formulado pelo doutor Marcio Kayatt, em nome da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), à qual sou filiado desde muito e pela qual nutro especial carinho, submeti-me a escrever artigo inédito para a Revista do Advogado que aborda o importante tema “O Novo Código de Ética e Disciplina da OAB”.
Ao agradecer o verdadeiro chamamento para escrever sobre a colaboração premiada e o novo Código de Ética, confesso minha inquietação com os novos rumos do Direito Penal e Processual Penal. Os anseios populares clamam por um novo momento de mudança e o Direito, como um todo, é chamado a contribuir. A mídia, desde o julgamento da Ação Penal nº 470, tem dado especial destaque ao Poder Judiciário, com ênfase às questões relacionadas ao Direito Criminal.
Frente a este “novo tempo”, surge a renovação de nosso Código de Ética que nos motiva a analisar o “instrumento da moda”, o instituto da colaboração premiada, em face de nossos mandamentos éticos.
Ao fazer essa análise, não pretendo, por evidente, esgotar o tema, mas sim lançar reflexões em face de um instituto tão valorizado quanto criticado. Um instrumento que desperta ira e paixão, mas que veio para ficar e já mudou a “cara” do Direito Penal brasileiro, balançando por completo a estrutura das defesas criminais tradicionais e impulsionando o Direito Penal para este “novo tempo”.
Grosso modo, só se viu tamanha comoção quando fomos apresentados ao Direito Penal Econômico e à responsabilização criminal das pessoas jurídicas. Se antes eram críticas a esta entrada do Direito Penal em área reservada ao Direito Administrativo, quiçá ao Direito Administrativo Sancionador, hoje o Direito Penal Econômico e a própria responsabilidade penal da pessoa jurídica são fatos consumados. Acredito que assim será também com o instituto da colaboração premiada.
Portanto, agradeço uma vez mais o convite para escrever em espaço tão nobre da nossa Revista do Advogado da AASP e convido todos à profunda reflexão sobre o espinhoso e árido tema.
2 Sobre o novo Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil
A Resolução 2/2015, de lavra do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, aprovou o novo Código de Ética e Disciplina de nossa entidade de classe. Publicado no dia 4 de novembro de 2015, com vacatio legis de 180 dias, entrará em vigor no próximo mês de maio. Mais de 20 anos após a sua edição, num cenário realmente diferente daquele de quando foi editado, restou revogado o Código de Ética e Disciplina editado em 13 de fevereiro de 1995.
Os 80 artigos do novo Código de Ética e Disciplina são divididos em três títulos, sendo que o primeiro deles, “Da ética do advogado”, é o que nos interessa para o presente trabalho. Os demais títulos tratam “Do processo disciplinar” (Título II) e “Das disposições gerais e transitórias” (Título III).
Destaquem-se, desde logo, os mandamentos que devem representar a conduta dos advogados no seu relacionamento com clientes, com os demais advogados, com autoridades, servidores públicos e agentes políticos, todos expressamente consignados no preâmbulo do Código de Ética e Disciplina:
“lutar sem receio pelo primado da Justiça; pugnar pelo cumprimento da Constituição e pelo respeito à lei, fazendo com que o ordenamento jurídico seja interpretado com retidão, em perfeita sintonia com os fins sociais a que se dirige e as exigências do bem comum; ser fiel à verdade para poder servir à Justiça como um de seus elementos essenciais; proceder com lealdade e boa-fé em suas relações profissionais e em todos os atos do seu ofício; empenhar-se na defesa das causas confiadas ao seu patrocínio, dando ao constituinte o amparo do Direito e proporcionando-lhe a realização prática de seus legítimos interesses; comportar-se, nesse mister, com independência e altivez, defendendo com o mesmo denodo humildes e poderosos; exercer a advocacia com o indispensável senso profissional, mas também com
desprendimento, jamais permitindo que o anseio de ganho material sobreleve a finalidade social do seu trabalho; aprimorar-se no culto dos princípios éticos e no domínio da ciência jurídica, de modo a tornar-se merecedor da confiança do cliente e da sociedade como um todo, pelos atributos intelectuais e pela probidade pessoal; agir, em suma, com a dignidade e a correção dos profissionais que honram e engrandecem a sua classe”.
Em seu Título I – “Da ética do advogado” –, e em especial no capítulo I – “Dos princípios fundamentais” –, o novo Código de Ética acabou por normatizar tais mandamentos como deveres do advogado.
2.1. A conciliação das partes como pilar do novo Código de Ética seria um incentivo a um novo Direito Penal Negocial?
Um dos pilares do referido Código é a conciliação entre as partes, inclusive através da mediação, sendo tal mister dever de todo advogado. Dispõe seu art. 2º, entre outros deveres, que o advogado deve “estimular, a qualquer tempo, a conciliação e a mediação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios” (parágrafo único, inciso VI). Cabe aqui uma primeira indagação: seria a colaboração premiada um instrumento legítimo de conciliação entre réus confessos e as autoridades de persecução penal? Evidentemente, precisaríamos superar inúmeros paradigmas para enxergar tal possibilidade, mas é fato que o Código de Ética propõe tal reflexão.
2.2. Das relações com o cliente e da colaboração premiada como estratégias de defesa
É fato incontroverso, e isso não é novidade, que não é permitido aos advogados emprestarem “concurso aos que atentem contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa humana” (art. 2º, parágrafo único, inciso VIII, alínea c). Então, a eventual elaboração de documentos ou pareceres jurídicos que alavanquem atos de corrupção ou outros atos ilícitos praticados por organizações criminosas são absolutamente vedados pelo Código de Ética. É preciso ter muita cautela nesse ponto, pois estamos frente a uma “área cinzenta” de difícil mensuração entre todos os personagens do debate jurídico. Muitos profissionais, mesmo que culposamente, ou sem perceberem ter sido instrumentalizados, podem estar expostos a esses atos. Que repercussão tais atos alcançam frente ao instrumento de colaboração premiada é outra indagação que merece debate.
Em seu capítulo III, o novo Código de Ética aborda as “relações com o cliente” deixando claro que a defesa criminal, sem dúvida um dos pilares do Estado Democrático de Direito, é exercida “sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado”, conforme preceitua o art. 23 e seu parágrafo único, segundo o qual “não há causa criminal indigna de defesa, cumprindo ao advogado agir, como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais”.
Neste ponto, não me resta dúvida de que cabe ao advogado apresentar a seus clientes todas as estratégias possíveis de defesa, inclusive a colaboração premiada, visto ser essa um instrumento legítimo de defesa, portanto, uma opção entre outras tantas possíveis dentre os mais lídimos princípios constitucionais. Se, como preceitua o art. 10, “as relações entre advogado e cliente baseiam-se confiança recíproca”, faz-se necessário esclarecer todas as reais e efetivas possibilidades de defesa criminal.
2.3. Do sigilo profissional previsto no Código de Ética e do sigilo da colaboração Premiada
Outro ponto que merece destaque no novo Código de Ética, e que se aplica integralmente às
questões relacionadas com a colaboração premiada, diz respeito ao sigilo profissional, abordado no capítulo VII do Código. O art. 35 deixa claro que “o advogado tem o dever de guardar sigilo dos fatos de que tome conhecimento no exercício da profissão”, e este sigilo profissional é “de ordem pública, independendo de solicitação de reserva que lhe seja feita pelo cliente” (art. 36). O sigilo profissional, portanto, não necessita de pedido do cliente tampouco de cláusula que obrigue o advogado.
No caso específico da colaboração premiada, é certo que para seu pleno êxito tal sigilo é essencial. Os fatos objeto do acordo de colaboração premiada só se tornarão públicos após a homologação judicial do acordo e quando, por ordem judicial, o conteúdo da colaboração deixar de ser sigiloso, nos termos do § 2º do art. 7º da lei 12.850/2013:
“O acesso aos autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das investigações, assegurando- se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento”.
Note-se que, para além disso, o § 3º do art. 7º da lei 12.850/2013 estabelece que “O acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia, observado o disposto no art. 5º”.
Neste ponto cai por terra uma das maiores críticas ao instituto da colaboração premiada e que diz respeito à possível ofensa ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa. Tais princípios norteadores de um verdadeiro Estado de Direito e tão valorizados por todos nós, advogados, em especial nós, advogados de defesa criminal, não são afrontados, pois a própria lei 12.850/2013 obriga a publicidade do acordo de colaboração premiada quando do recebimento da denúncia. Vale dizer, o processo permanece acusatório, e não inquisitório, como afirmam os críticos mais severos da colaboração, pois aquele que tenha sido apontado por réu colaborador como participante de ato ilícito terá acesso a todas as provas contra ele produzidas e poderá exercer plenamente seu direito de defesa.
Note-se que, se o conteúdo da colaboração premiada for “derrubado” pela defesa do acusado, a colaboração não permanecerá válida e a situação do colaborador será muito mais gravosa do que antes da colaboração. Além de perder os benefícios da colaboração, o réu colaborador estará sujeito ao tipo penal do art. 19 da lei 12.850/2013, qual seja “Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas”, estando sujeito à pena de reclusão de um a quatro anos, e multa.
2.3.1. Do sigilo que envolve o juiz e as demais partes envolvidas no acordo de colaboração
Pausa para reflexão quanto ao papel do sigilo das demais partes envolvidas num processo de colaboração premiada, especificamente, refiro-me ao Ministério Público e à polícia. Os pontos de negociação, se esta não resultar concretizada ou mesmo não for homologada pelo juiz, não podem ser utilizados por estas autoridades. Para isso, em alguns casos, passou-se a utilizar um “termo de confidencialidade” que, além de servir como marco inicial da negociação, também obriga as partes ao sigilo.
Uma das críticas que se faz ao instituto da colaboração é quanto à eventual utilização, pelos órgãos de persecução, das informações trazidas pelo colaborador quando o acordo não resulta exitoso, ou quando acaba não sendo homologado pela autoridade judicial. A crítica, a meu ver, está correta, e faz-se necessário um aprimoramento da legislação neste ponto. A lei 12.850/2013 admite que seja feita a retratação da proposta de acordo, dispondo em seu art. 4º, § 10, que “as partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas utoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor”. A meu ver, faz-se necessário que reste disposto em lei aquilo que se tem buscado com o “termo de confidencialidade”, isto é, nada do que for tratado durante a negociação do acordo de colaboração poderá ser usado por quaisquer das partes no caso de o acordo não evoluir.
O juiz não participa da negociação, tampouco de sua formalização, sendo expresso nos termos do § 6º do art. 4º que as negociações são realizadas entre o investigado, seu advogado e o Ministério Público ou delegado de polícia. Entretanto, mesmo que a colaboração obedeça a todos os passos exigidos, o juiz pode recusar o acordo que não atender aos requisitos legais ou pedir adequações ao caso completo (art. 4º, § 8º). Vale dizer, o papel do magistrado não é o de simples homologador, mas sim de importante verificação dos requisitos legais da proposta, podendo, inclusive, adequá-la ao caso concreto. Não me parece, prima facie, que caiba ao magistrado um papel de análise quanto à extensão do conteúdo da colaboração.
3 Sobre a colaboração premiada
3.1. Cenário legislativo anterior à lei 12.850/2013
A operação Lava Jato trouxe para o centro do debate acadêmico, e também do imaginário popular, o instrumento da colaboração premiada.
Todos têm opinião sobre o tema e, em especial, nós, criminalistas, somos fonte inesgotável de críticas ao referido instituto. Entretanto, importante mencionar, desde logo, que não se trata de instrumento recente na legislação brasileira, visto que previsto em lei desde a década de 90 do século passado. Desta forma, não seria necessário mencionar que foi utilizada em inúmeros outros casos antes da mencionada operação, pois a simples pesquisa jurisprudencial revela os desdobramentos do instituto perante nossos tribunais. De outro lado, é fato concreto que a colaboração premiada passou, com a mencionada operação, a ser mais comumente utilizada, inclusive em âmbito estadual, e não só na esfera federal.
A lei 8.072/1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, é considerada como a primeira legislação que adotou a então denominada delação premiada no ordenamento jurídico brasileiro. O art. 8º, em seu parágrafo único, estabelece que o partícipe ou associado do bando ou quadrilha que denunciá-los à autoridade e possibilite seu desmantelamento terá sua pena reduzida de um a dois terços. A lei 9.080/1995 acrescentou dispositivos sobre a colaboração premiada, equiparando- a à confissão espontânea, ou seja, “revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa”.
Ainda na década de 1990, a lei 9.269/1996 introduziu a colaboração premiada no Código Penal, especificamente quanto ao delito de extorsão mediante sequestro tipificado no art. 159, também simplesmente prevendo a possibilidade de redução de pena, sem delimitar a forma de efetivar um acordo de colaboração.
Em sua redação original, a lei 9.613/1998 dispunha sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, e previa, para os casos de “colaboração espontânea” por parte do autor, coautor ou partícipe do delito, que prestassem esclarecimentos que conduzissem à apuração de infrações penais e de sua autoria, ou levassem à localização dos bens, direitos ou valores provenientes do delito, pena reduzida de um a dois terços, começando o cumprimento em regime aberto, podendo o juiz, inclusive, deixar de aplicar a pena ou substituí-la por pena restritiva de direitos.
Entretanto, a referida lei sofreu significativa alteração através da lei 12.683/2012 e a redução da pena, ante a “colaboração espontânea”, passou a ser facultativa ao juiz nos termos do § 5º do art. 1º:
“A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime”.
A primeira legislação a ampliar um pouco o debate sobre a colaboração premiada foi a lei 9.807/1999, que estabelece normas para programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas e também para a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal. A lei destina seu capítulo II a dispor sobre a “proteção aos réus colaboradores”, trazendo inclusive a possibilidade de perdão judicial e consequente extinção da punibilidade ao acusado primário que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, cuja colaboração resulte na identificação dos demais coautores e partícipes do delito, na localização da vítima com a sua integridade física preservada e na recuperação total ou parcial do produto do crime (art. 13). O parágrafo único estabelece que a concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do colaborador e a natureza, circunstância, gravidade e repercussão social do delito. O art. 14 estabelece que, em caso de condenação, o acusado que colaborar voluntariamente com o processo e investigação criminal terá a sua pena reduzida de um a dois terços.
Neste ponto abre-se outra celeuma ainda não resolvida sobre a colaboração premiada. A referida legislação não apresenta um rol taxativo de crimes em que ela pode ser utilizada, parecendo estar autorizado seu uso em qualquer tipo penal. Com o advento da lei 12.850/2013, que não revogou expressamente nenhuma das leis anteriormente elencadas, estaria a lei 9.807/1999 em vigor, admitindo-se a colaboração premiada em qualquer tipo penal? A meu ver, este é outro ponto que precisa ser mais bem definido e penso que a colaboração premiada apenas deve ser admitida em crimes cuja lei expressamente assim se manifeste, apontados como crimes graves e que necessitem efetivamente deste instrumento como linha auxiliar de persecução penal, segundo a política criminal brasileira. Se assim não for, a crítica de falência do Estado enquanto órgão de investigação passará a ter credibilidade.
A lei 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), na mesma linha da legislação até então promulgada, dispôs no seu art. 41 sobre a “colaboração voluntária”. Segundo esta norma, o indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal, identificando os demais coautores e partícipes do delito e auxiliando na recuperação total ou parcial do objeto do crime, no caso de condenação, terá a pena reduzida de um a dois terços.
Este era o cenário anterior à lei 12.850/2013. A colaboração premiada deve ser admitida em crimes cuja lei expressamente assim se manifeste.
3.2. A lei 12.850/2013
Todas essas leis que trouxeram em seu bojo o instituto da colaboração premiada como instrumento possível para réus colaboradores alcançarem benefícios legais resultaram, naturalmente, num aprimoramento da legislação, e esta resultou, em 2013, na lei 12.850, que define organização criminosa e dispõe sobre os meios de obtenção da prova. Aponte-se, desde logo, que a lei 12.850/2013 se aplica às organizações criminosas, mas também “às infrações penais previstas em tratado ou convenção internacional quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente” (§ 2º, art. 1º, inciso I) e “às organizações terroristas internacionais, reconhecidas segundo as normas de direito internacional, por foro do qual o Brasil faça parte, cujos atos de suporte ao terrorismo, bem como os atos preparatórios ou de execução de atos terroristas, ocorram ou possam ocorrer em território nacional” (§ 2º, art. 1º, inciso II).
Apesar de a seção I da referida lei tratar exclusivamente do instituto da colaboração premiada, finalmente concedendo contornos práticos a sua efetivação, a legislação também trouxe inúmeras outras polêmicas ainda não amplamente debatidas e referentes a meios de investigação criminal e coleta de provas.
Na seara das provas, a legislação, em seu capítulo II, tratou da captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos e acústicos; do acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais e comerciais; a interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas; e ao afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal.
Ressalte-se que o acesso a registros, dados cadastrais, documentos e informações que informem exclusivamente a qualificação pessoal, filiação e endereço constantes dos registros da Justiça Eleitoral, das empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradores de cartão de crédito estão acessíveis a autoridades policiais e membros do Ministério Público, independentemente de autorização judicial, nos termos do art. 15 da lei 12.850/2013.
Importante ressaltar que as empresas de transporte e as concessionárias de telefonia fixa ou móvel deverão manter cadastros de reservas, viagens, e registros de identificação dos terminais de origem e destino das ligações telefônicas locais, nacionais e internacionais por cinco anos, conforme disposição dos arts. 16 e 17 da lei 12.850/2013.
Para comprovar que vivemos num Estado policial de controle cada vez mais amplo, a lei 12.850/2013 também nos colocou frente à ação controlada (seção II); aos agentes infiltrados (seção III) e à cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas de interesse da investigação e instrução criminal (art. 3º, inciso VIII), revogando expressamente a lei 9.034/1995, que já previa a ação controlada, bem como a infiltração de agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, além de regular meios de prova e procedimentos investigatórios de atos ilícitos praticados por organizações criminosas.
Quanto à necessidade da lei 12.850/2013, deve-se relembrar o importante papel da mídia tradicional, mas muito especialmente daquela mídia espontânea, hoje traduzida na forte presença das redes sociais, que indubitavelmente exercem pressão como fonte catalisadora do sentimento de transformação exigido pela sociedade em busca de uma nova roupagem para a política criminal brasileira.
3.3. Colaboração premiada como legítimo instrumento de defesa após a lei 12.850/2013
Se, de um lado, o nosso posicionamento é contrário ao agravamento de penas e ao atual ambiente da flexibilização das garantias constitucionais, não há como incluir a colaboração premiada como parte desta crítica.
O instrumento tem demonstrado sua validade e eficácia no estrito limite da lei 12.850/2013, sendo, a meu ver, o Direito Penal Premial um novo momento na evolução de nosso sistema. No acordo de colaboração não estamos frente a um novo formato da inquisição ou num cenário de tortura, mas sim frente ao caráter voluntário do colaborador que busca a negociação com os órgãos de acusação e, se comprovar concretamente o conteúdo de seu depoimento, poderá ter seu acordo homologado, obtendo os benefícios referentes à forma do cumprimento de sua pena corporal e pecuniária.
É fato inegável que todos os instrumentos de controle resultaram numa profunda alteração do sistema de investigação e a consequência direta passou a ser o não reconhecimento, pelos nossos tribunais, das conhecidas nulidades apontadas nas defesas criminais tradicionais. Portanto, estamos frente a um novo momento em que estratégias de defesa tradicionais encontram pouco êxito no Poder Judiciário. Em minuciosa análise de decisões recentes de nossos tribunais superiores, constata-se que, após a lei 12.850/2013, reduziram-se drasticamente as decisões judiciais acolhendo nulidades apontadas pelas defesas.
É justo neste ponto que a colaboração premiada passou a integrar a estratégia de defesa técnica. Ela é sim um instrumento de defesa legítimo que atende os princípios éticos norteadores da conduta de todos os advogados. Evidentemente, também carece de aprimoramentos que estão sendo apontados pelos críticos e também neste artigo.
É preciso deixar claro que não se trata de simples benefícios a réus confessos. A confissão por si só não é suficiente para que seja concretizado o acordo de colaboração premiada. É necessário que o pretenso colaborar vá além. É preciso apontar e provar (!), ou robustamente demonstrar como obter a prova de novos fatos ainda não investigados. Ressalte-se que os benefícios ao colaborador só são validados depois que seu depoimento for confirmado através de provas robustas, sejam elas trazidas pelo colaborador ou apontadas por ele e checadas pelas autoridades competentes. Portanto, não estamos frente a hipóteses de confissão, mas sim de colaboração para que a investigação localize fatos novos, revele estruturas criminosas desconhecidas e recupere valores obtidos de forma ilegal, conforme expressamente disposto no art. 4º da lei 12.850/2013, segundo o qual a colaboração deve resultar em “um ou mais dos seguintes resultados: I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada”.
Anote-se ainda que a concessão do benefício levará em consideração a personalidade do colaborador, a gravidade e a repercussão do fato criminoso, bem como a eficácia das informações e provas trazidas na colaboração.
No que tange à eficácia da colaboração, surge a hipótese de perdão judicial mesmo que não previsto na proposta inicial. Natural que isso ocorra, pois, via de regra, a colaboração resultará numa redução da pena em até dois terços, podendo ser substituída por pena restritiva de direitos.
Entretanto, se, após o aprofundamento das investigações, decorrentes da colaboração, e das provas trazidas pelo colaborador, verificar-se uma eficácia ainda maior que aquela inicialmente prevista, nada mais justo que seja possível a extinção da punibilidade por meio do perdão judicial.
A lei 12.850/2013, neste ponto sob severas críticas, mitiga o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. O § 4º, art. 4º, dispõe que o Ministério Público poderá deixar de oferecer a denúncia quando o colaborador não for o líder da organização criminosa (I), ou for o primeiro a colaborar efetivamente (II). Caminhamos rumo ao princípio da oportunidade da ação penal? Se acreditarmos na possibilidade de um Direito Penal Premial (já existente com a realidade da colaboração premiada) e de um Direito Penal Negocial, a resposta é positiva. Estou ciente das críticas, muitas delas absolutamente corretas, a este ponto de evolução do Direito Penal. Entretanto, esta é a realidade prática que está posta e, parece-me, que nos cabe um papel ativo para correta adequação desta nova realidade a nosso ordenamento jurídico, preservando, ao máximo possível, as garantias constitucionais ao Direito Penal e Processual Penal.
Outra crítica que se faz ao instituto da colaboração premiada reside no fato de ela ser utilizada como ferramenta principal na revelação de crimes, contribuindo para que o aparato estatal de investigação criminal valha-se dessa colaboração para seu êxito. Muitos afirmam, inclusive, que a palavra do colaborador não tem validade por ser reconhecidamente um criminoso.
Ora, é certo que os inúmeros problemas enfrentados em nosso país na seara da investigação criminal precisam ser resolvidos, com melhorias no investimento dos setores ligados à persecução penal, em especial aqueles serviços de inteligência. Entretanto, este argumento não invalida a colaboração premiada de forma alguma. O colaborador deve trazer ao processo um conjunto probatório robusto sob pena de não obter os benefícios do acordo. Se a prova que trouxer for imprestável ou sobre ela não houver interesse do órgão acusador ou de investigação, não haverá acordo. Portanto, quem assume o ônus de provar aquilo que afirma no acordo é o próprio colaborador. É ele que deve produzir a prova. Se não o fizer, não haverá acordo. Tal fato legitima a existência do instrumento da colaboração premiada e afasta a crítica segundo a qual “basta o colaborador falar para obter acordo”, ou que “a palavra do colaborador não tem valor”. Em verdade, pouco importa, pois não estamos diante de meras informações, mas sim frente à necessidade de produzir prova daquilo que afirma em seu acordo.
Não são poucas as vezes em que a colaboração premiada é muito mais grave do que o próprio processo penal, afinal, normalmente não estamos frente à extinção da punibilidade, mas sim frente a uma condenação. Entretanto, é a certeza da solução definitiva quanto à pena a ser cumprida que tira a “espada que pesa sobre a cabeça do acusado”. Este, ao reconhecer a sua culpa, afasta a aplicação de garantias constitucionais como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, e mesmo o direito ao silêncio (§ 14, art. 4º), pois, ao avaliar que suas chances de sucesso são mínimas (ou inexistentes), opta pelo perdão judicial, ou, no mínimo, pelo benefício da certeza quanto à forma do cumprimento de sua pena.
Tem-se visto que muitos acordos de colaboração premiada resultam em cumprimento de prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Aqui repousa outra crítica de que tal possibilidade é muito singela diante da gravidade dos crimes. É preciso ressaltar que a prisão domiciliar e o uso da tornozeleira são instrumentos bastante gravosos e que conduzem o colaborador ao completo afastamento da vida social, com custo menor ao Estado (vide aqui o custo de nosso sistema penitenciário e a baixíssima existência de vagas na prisão. As últimas estatísticas dão conta de que o custo mensal de um preso oscila entre R$ 1.400,00 e R$ 4.500,00 por mês. Já o custo do monitoramento varia entre R$ 167,00 e R$ 660,00).
Após o regime inicial fechado (prisão domiciliar) tem-se utilizado o regime semiaberto, permanecendo o colaborador em sua residência no período noturno e finais de semana, podendo ausentar-se para trabalhar no período diurno. Nesta condição temos verificado também a gravidade do acordo de colaboração que torna o colaborador um verdadeiro “inapto social”, visto que não pode se ausentar para nenhuma atividade social, por mais corriqueira que seja, e mesmo para submeter- se a tratamento de saúde precisa de autorização judicial. Portanto, a crítica referente à prisão domiciliar também não merece procedência.
Ressalte-se que as penas dos acordos de colaboração têm avançado principalmente na questão patrimonial como previsto no art. 4º, inciso IV. As notícias divulgadas pelo Ministério Público Federal em 18 de dezembro de 2015 dão conta de que os acordos de colaboração, apenas na “Operação Lava Jato”, já resultaram na recuperação de R$ 2,8 bilhões. Destes, R$ 659 milhões são originários apenas de repatriação de valores ilícitos mantidos no exterior. Neste ponto, reside para o Ministério Público e para as autoridades policiais um dos pontos altos dos acordos de colaboração, pois, além de obter mais elementos para as investigações, também recuperam ativos no Brasil e no exterior, recompondo em parte os danos ao patrimônio público.
No entanto, o instituto, para alcançar sua plenitude como legítimo instrumento de defesa, tem muito a ser aprimorado. Estamos vivendo um divisor de águas e a vulgarização da colaboração premiada pode custar-lhe a credibilidade.
4. O papel do advogado na colaboração premiada
Lembre-se que, antes de ser apresentada para homologação judicial, a colaboração premiada passa por um longo rito. O espaço da necessária negociação entre advogados de defesa e Ministério Público não está regulamentado em lei e o papel do advogado é de suma importância para que a colaboração seja efetiva, respeitando sua regularidade, legalidade e voluntariedade, ou mesmo para que esta não ocorra se violar a legislação.
Será importante para o aprimoramento do acordo que possamos estabelecer legalmente regras claras e marcos temporais que, ao serem alcançados, não permitam mais um simples retrocesso sem justificativas também permitidas em lei. Por exemplo: já tendo sido fechada a negociação quanto ao conteúdo da colaboração e tendo adentrado a questão dos benefícios possíveis ao colaborador, não é aceitável que o Ministério Público simplesmente interrompa as negociações afirmando “falta de interesse de prosseguir porque esperava conteúdo mais amplo”. Este tema merece ampla reflexão e temos insistido na necessidade de fixar claramente as regras.
A invenção de fatos ou a omissão injustificada de outros fatos poderá levar à invalidade do acordo e à perda de todos os benefícios alcançados pelo colaborador, além de, como já dito, a possível prática de outro ilícito. Neste ponto, o papel do advogado também alcança destaque, pois deve deixar claro a seu cliente todos os riscos inerentes a um acordo de colaboração premiada. E estes riscos não são poucos, pois o colaborador estará, por longo tempo, sujeito a novos depoimentos perante os mais diversos órgãos que julgarem necessário ouvi-lo nos termos de seu acordo de colaboração.
A própria questão semântica mostra-se importante no papel do advogado. Penso que o termo delação é pejorativo e nos remete à traição. Como tal, a entrega de informações para prisão de pessoas que atuavam contra a ditadura militar, por exemplo. Acredito que o uso do termo colaboração, como a própria lei define o instrumento,afastará parte do ranço que permanece no uso da palavra delação.
Não é ousado afirmar que o papel do advogado é o de maior destaque nos acordos de colaboração, pois cabe a ele conduzir seu cliente verificando sua legalidade e, mais do que isso, estando atento a se cada passo dado na negociação está em consonância com a legislação e preservando o caráter voluntário do colaborador.
Finalmente, acredito que a ética do advogado não deve passar por criticar a “falta de ética” do colaborador que “trai” seu companheiro de crime, mas passa sim por reforçar o pleno exercício de todas as garantias necessárias a um acordo de colaboração, verificando claramente se é conveniente e necessário negociar a pena, e, se optar por este acordo, zelar para que sejam preenchidos os requisitos legais, em especial o da regularidade do procedimento e voluntariedade de seu cliente. Finalmente, entende-se que um acordo de colaboração apoia um Estado que seja verdadeiramente um Estado Democrático de Direito menos brutal e mais inteligente na investigação criminal.
5. Conclusão
Estamos trabalhando com um novo instrumento de defesa. É certo que ele necessita ainda de regras mais claras. É uma mudança profunda e dramática para o Direito Penal e Processual Penal. Como toda mudança, esta também causa desconforto e inúmeras controvérsias. De qualquer sorte, acredito que a colaboração premiada é um caminho sem volta e tendemos, como política criminal, a nos aproximar do Direito Penal norte-americano, inclusive com instrumentos que lá já são de uso cotidiano, e aqui causam repulsa, como a recompensa para quem aponta crimes de corrupção na própria empresa ou em outras empresas.
Temos que nos afastar do caráter maniqueísta com o qual avaliamos a colaboração premiada. Com o Direito Penal Negocial ou com o Direito Penal Premial, é possível construir uma ponte entre dois importantes temas constitucionais e que não podem continuar num embate eterno. A segurança pública e as garantias constitucionais podem sim caminhar em campo igualitário e de colaboração. Na linha prevista em nosso Código de Ética e Disciplina, nós, os advogados, temos papel importante e necessário no campo da conciliação, não só entre as partes, mas aqui também entre a segurança pública e as garantias constitucionais.
Portanto, não tenho dúvida de que a colaboração premiada já está inserida em nosso ordenamento, e, com as melhorias que apontamos e outras que virão, deixará de ser assunto polêmico para se tornar concretamente um instrumento de defesa, não havendo qualquer regramento no novo Código de Ética da OAB, como não havia no anterior, tampouco no Estatuto da Advocacia, que impeça a utilização deste instrumento pelos advogados brasileiros.
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*O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, Ano XXXVI, de Abril de 2016, nº 129.
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*Marlus H. Arns de Oliveira é advogado, ex-presidente da OAB/Curitiba, mestre e doutorando em Direito Penal pela PUC/PR e sócio do Arns de Oliveira & Andreazza Advogados Associados.
Fonte: Migalhas