A Lei Rouanet está na vida dos brasileiros, mesmo que eles não façam ideia disso. Apenas no ano passado, mais de 3.000 projetos culturais (peças, festivais, exposições, musicais, livros etc.) foram viabilizados graças à lei.
Ela foi usada, por exemplo, para financiar “Picasso e a Modernidade Espanhola” no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, a exposição pós-impressionista com maior público no mundo segundo o site “The Art Newspaper“. Outro exemplo de projeto incentivado é o espetáculo “Urinal”, que rendeu a Zé Henrique de Paula o prêmio de melhor diretor pela Associação Paulista de Críticos de Arte em 2015.
Apenas em maio, a lei foi alvo de ação na Polícia Federal e na Câmara. No fim daquele mês, o delegado Eduardo Mauat, da força-tarefa da operação Lava Jato, encaminhou ofício ao Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle solicitando detalhes sobre os cem maiores captadores de recursos na última década. O pedido, contudo, foi anulado pelo juiz Sérgio Moro.
Na mesma época, foi protocolado na Câmara dos Deputados requerimento para abertura de CPI que pretende apurar supostas irregularidades na concessão de benefícios fiscais por meio da lei de incentivo.
Para auxiliar no debate sobre a Lei Rouanet, a Folha preparou uma série de perguntas e respostas.
1. O que é a Lei Rouanet?
Sancionada pelo presidente Fernando Collor em 23 de dezembro de 1991, a lei 8.313 instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, que implementou mecanismos de captação de recursos para o setor cultural. Um deles é o incentivo à cultura, ou mecenato (que popularmente ficou conhecido como Lei Rouanet).
2. Como funciona o incentivo cultural?
O governo federal permite que empresas e pessoas físicas descontem do Imposto de Renda valores diretamente repassados a iniciativas culturais, como produção de livros, preservação de patrimônios históricos, festivais de música, peças de teatro, espetáculos de circo, programas audiovisuais etc. Ou seja, em vez de pagar o imposto da totalidade, você reverte parte dele a um projeto cultural.
3. Quanto as empresas e pessoas físicas podem destinar a projetos aprovados na Rouanet? E quanto podem deduzir do Imposto de Renda?
Os incentivadores podem ter até o total do valor desembolsado deduzido do imposto devido. Mas há limite: empresas com lucro real podem abater até 4% do imposto devido; pessoas físicas, até 6%.
Assim, uma companhia que deve pagar R$ 1 milhão de Imposto de Renda pode redirecionar a um projeto aprovado na Lei Rouanet até o valor de R$ 40 mil. Já uma pessoa que paga, digamos, R$ 10 mil de imposto pode deduzir até R$ 600.
4. Qualquer um pode enviar proposta ao MinC para obter verba via Lei Rouanet?
Sim. Para isso, o proponente deve se cadastrar no Salic (Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura) e enviar sua proposta. O endereço é novosalic.cultura.gov.br.
5. Mas até artistas consagrados, com carreira de sucesso, que supostamente não precisam de incentivo, podem solicitar incentivo?
Sim. A lei não veta a participação de grandes nomes da cultura. Ser consagrado ou não, possuir dinheiro ou não, ter uma carreira de sucesso ou não, ter qualidade artística ou não… Estes são quesitos subjetivos, que não passam por avaliação no MinC. O ministério lembra que “a lei veta expressamente apreciação subjetiva quanto ao seu valor artístico ou cultural”.
6. Se todo mundo pode enviar projeto ao MinC, como são escolhidas as propostas que poderão captar dinheiro pela Lei Rouanet?
A proposta passa por diversas etapas. A primeira delas é o próprio MinC. Quando o ministério recebe a proposta, faz análise de documentação e a encaminha a um parecerista ou uma entidade vinculada especializada na área do projeto —humanidades, dança, patrimônio histórico etc.
O parecerista realiza uma avaliação baseada em critérios objetivos para apurar a viabilidade técnica e financeira. Neste momento são efetuados cortes no orçamento e solicitados ajustes no projeto. Depois disso, a proposta recebe parecer favorável ou desfavorável e segue para a Cnic (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura).
A Cnic é um colegiado composto por representantes de artistas, empresários e sociedade civil de todas as regiões, escolhidos pelo ministro da Cultura, com base em lista de 42 nomes indicados por 28 entidades habilitadas. O mandato é de dois anos. O grupo é responsável por avaliar as propostas e sugerir ao MinC a aprovação ou não. Caso a Cnic decida (em votação) pelo deferimento da proposta, o MinC autoriza a captação. A partir daí, o proponente deve procurar empresas e pessoas físicas que queiram investir no projeto em troca de isenção fiscal.
7. Mas então não é o MinC que escolhe dar dinheiro para este ou aquele projeto ou artista?
Não. É justamente o oposto. A Lei Rouanet propõe que, em vez de o MinC decidir o que financiar na cultura (ou seja, se este ou aquele artista vai receber dinheiro), a decisão seja tomada por artistas, empresários e representantes da sociedade civil. É por isso que a aprovação de projetos passa por tantas instâncias (avaliação de documentos pelo MinC, avaliação de parecerista, votação da Cnic etc.)
8. Mesmo assim, a Lei Rouanet privilegia determinados artistas ou expressões, ou artistas de determinados posicionamentos ideológicos?
Em tese não. De acordo com o MinC, em nenhuma das etapas de avaliação há análise de “posicionamento político, artístico, estético ou qualquer outro relacionado à liberdade de expressão”. Novamente, os critérios de avaliação são objetivos, e não subjetivos.
9. E quais seriam esses critérios objetivos? O que, afinal, é avaliado na proposta?
De acordo com a instrução normativa que regula a lei, são avaliados itens como capacidade técnica (o proponente consegue realizar o que propõe?), suficiência das informações na proposta (o projeto deixa claro o que o proponente deseja?), pertinência do projeto (o que é proposto faz parte do rol de projetos incentivados pela lei, como livros, espetáculos, peças, discos etc.?), adequação das estratégias de ação aos objetivos (quais serão as etapas do projeto para que, no prazo estipulado pelo proponente, se chegue a um resultado?), adequação do projeto de medidas de acessibilidade e democratização de acesso (o projeto atende, por exemplo, pessoas com deficiência? é aberto a todos? é acessível a todos?), compatibilidade dos custos (a planilha de gastos tem valores praticados no mercado?) etc.
São itens, portanto, objetivos. Em momento algum é questionado, por exemplo, “tal peça pode ser considerada arte?” ou “tal artista realmente precisa de incentivo?”.
10. O dinheiro sai dos cofres públicos?
Não, o dinheiro não sai dos cofres públicos. Sai de empresas e pessoas físicas em forma de patrocínio ou doação. É, contudo, renúncia de receita —ou seja, dinheiro que o governo abre mão de receber via Imposto de Renda. Por isso, é “considerado verba pública”, diz Fábio de Sá Cesnik, presidente da Comissão de Mídia e Entretenimento do Instituto dos Advogados de São Paulo e membro da Comissão de Direito às Artes da OAB-SP. “Consta do relatório de gastos governamentais indiretos emitido pela Receita Federal.”
11. Todo projeto aprovado recebe dinheiro?
Não. A aprovação é apenas o primeiro passo de uma longa jornada para financiar o projeto cultural —trajeto quase nunca tranquilo. A aprovação é, digamos, uma “carta de autorização” para que empresas e pessoas que apoiarem o projeto tenham dedução no Imposto de Renda. Para conseguir o dinheiro, o autor da proposta deve bater de porta em porta nas empresas em busca de patrocínio.
Em 2015, de 8.782 propostas analisadas, o MinC aprovou 6.194. Dessas, 3.146 obtiveram alguma captação. Ou seja, metade dos projetos aprovados pelo MinC não conseguiu captar dinheiro algum.
12. Quem mais capta verba pela lei?
É comum ler por aí —sobretudo nas redes sociais— que “esse artista mama na Rouanet” ou “aquele artista é sustentado pela Rouanet”. Mas, segundo informações do MinC, os grandes captadores em 2015 foram produtoras e entidades como museus. Veja:
12. Quanto de imposto deixa de se arrecadar com a Lei Rouanet?
De acordo com projeção da Receita Federal para 2016, a renúncia fiscal correspondente à lei de incentivo à cultura —ou seja, o que deixará de ser arrecadado em impostos para financiamento de projetos culturais— será de aproximadamente R$ 1,3 bilhão. O valor representa 0,48% dos cerca de R$ 270 bilhões que o Brasil deixará de arrecadar em impostos com todos os programas de incentivo.
Somada a outras leis de incentivo (como a Lei do Audiovisual), a renúncia fiscal correspondente a programas do MinC será de R$ 1,8 bilhão —0,66% do total de programas da União.
13. Por que então a lei é tão criticada?
Porque, com 25 anos de existência, ela apresenta vícios.
Uma das maiores críticas —inclusive de titulares do MinC, como o ex-ministro Juca Ferreira— é a incapacidade da lei de conquistar apoio privado. Em sua origem, a ideia era que a Lei Rouanet pudesse atrair patrocínio sem renúncia fiscal. Em 2015, foi captado o valor de R$ 1,18 bilhão, do qual R$ 1,13 bilhão (95,61%) se refere a renúncia fiscal —apenas R$ 52 milhões vieram de apoio privado.
Também é alvo de críticas o fato de as empresas priorizarem projetos por critérios mais econômicos/comerciais que culturais.
Outra deficiência é a concentração de projetos na região sudeste, sobretudo em São Paulo e no Rio. No ano passado, 79% dos recursos captados com patrocinadores foram para esta região.