Marlus H. Arns de Oliveira
A Operação Lava Jato trouxe para o centro do debate acadêmico, e também do imaginário popular, o instrumento da colaboração premiada. Todos têm opinião sobre o tema.
Em verdade, mais do que a colaboração premiada, é preciso retomar os instrumentos de persecução trazidos pela Lei 12.850, de 2013. Afinal, a referida legislação concedeu contornos mais práticos à colaboração premiada, mas também trouxe ao ordenamento jurídico inúmeros meios de investigação criminal, indicando novos meios de coleta de provas.
Estamos frente à ação controlada; a agentes infiltrados e a cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas de interesse da investigação e instrução criminal; a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos e acústicos; ao acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais e comerciais; a interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas; e ao afastamento dos sigilos financeiros, bancário e fiscal.
O acesso a registros, dados cadastrais, documentos e informações que informem exclusivamente a qualificação pessoal, filiação e endereço constante dos registros da Justiça Eleitoral, das empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradores de cartão de crédito estão acessíveis às autoridades policiais e membros do Ministério Público independentemente de autorização judicial. Importante ressaltar que as empresas de transporte e as concessionárias de telefonia fixa ou móvel deverão manter cadastros de reservas, viagens e registros de identificação dos terminais de origem e destino das ligações telefônicas locais, nacionais e internacionais por cinco anos.
Independente de autorização judicial, o delegado de polícia e o Ministério Público podem ter acesso aos dados cadastrais de qualquer cidadão, inclusive informações sobre reservas de hotéis e viagens aéreas ou terrestres.
E o que dizer da ação controlada? É permitido, por enquanto mediante autorização judicial, retardar uma ação policial para geração de mais provas. Ou seja, o crime está acontecendo, as autoridades sabem e acompanham tudo de longe escolhendo o melhor momento para agir.
Trago ainda mais um exemplo para mostrar a intensidade do estado policial que vivemos. A Lei permite a infiltração de agentes em tarefas de investigação. Basta haver indícios de infração penal. A infiltração é autorizada por até seis meses, sem prejuízo de renovação. E mais: “não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infiltrado no curso da investigação”.
A grosso modo, todas essas medidas significam que as autoridades policiais, ministeriais e judiciais podem saber através de qual provedor de internet o leitor está lendo este artigo, qual cartão de crédito foi usado para assinar a edição física do jornal e também identificando terminais telefônicos utilizados. Parece ficção. Mas não é.
Vivemos num Estado policial de controle cada vez mais amplo e com inúmeros “convites” aceitos de pronto pela população e aparentemente inofensivos (“o Sr. deseja CPF na nota?”). Quando aceitamos registrar o CPF na Nota Fiscal vislumbrando algum desconto ou reembolso futuro, ou usamos serviços que permitem passar por praças de pedágio e estacionamentos pagando as despesas no final do mês, estamos aceitando este controle.
Ora, o cruzamento dos inúmeros bancos de dados permitem ao Estado policial saber os nossos passos mais corriqueiros do dia a dia. Estamos absolutamente controlados – e a maior parte da população, estranhamente, não acredita nisso ou toma medidas para repelir tais iniciativas.
De outro lado, é fato inegável que estes instrumentos de controle resultam numa melhoria no sistema de investigação. As provas acabam sendo muito bem produzidas. Isto resulta em operações policiais legitimadas por órgãos superiores, sem muitas chances de vitórias para as nulidades apontadas nas defesas criminais tradicionais. Estamos frente a um novo tempo em que as nulidades que assolavam boa parte das operações ficaram no passado.
Neste ponto, a colaboração premiada passou a integrar a estratégia de defesa técnica. Ela é sim um instrumento de defesa legítimo mas que precisa ser aprimorado. A sociedade precisa entender que os benefícios ao colaborador só são validados depois que seu depoimento é confirmado através de provas robustas. Não estamos frente a hipóteses de confissão, mas sim de colaboração para que a investigação localize fatos novos, revele estruturas criminosas e recupere valores obtidos de forma ilegal.
A negociação ocorre entre o Ministério Público, o investigado e seu defensor, cabendo ao juiz homologar ou não o acordo. E aqui entra a experiência da Força Tarefa do Paraná, que trabalha desta maneira desde a década de 90, quando houve o famoso caso do Banco Banestado e as evasões fraudulentas de divisas.
Com os anos de experiência, com o advento da Lei 12.850/13, com a aproximação do direito penal brasileiro de experiências da justiça americana, o Paraná tornou-se referência na investigação de crimes do Direito Penal Econômico. Para quem milita nesta seara no Estado do Paraná há mais de duas décadas, como eu, não há grandes surpresas na operação Lava Jato.
Não tenho dúvida que a colaboração premiada deixará de ser assunto polêmico para se tornar um instrumento de defesa com regras claras. O instrumento de acordo precisará ser melhorado, com por exemplo, a definição de pontos claros na negociação. Não se podendo recuar destes pontos já fixados. E isto precisará estar regulamentado na Lei.
E, para o Ministério Público e para a Polícia Federal, é uma forma de garantir mais elementos para as investigações e, consequentemente, a recuperação de ativos, no Brasil e no exterior, para recompor os danos ao patrimônio público.
Gostemos ou não, estamos cada vez mais distantes do Direito Penal Europeu e nos aproximando velozmente de um Direito Penal Negocial.