Para advogados que atuam na negociação de acordos, há pontos que precisam ser esclarecidos pela legislação brasileira. MPF discorda e acredita que já há regulamentação suficiente
Marcelo Odebrecht resistiu ao máximo fechar uma delação com a Justiça: já na cadeia ficou indignado com as benesses da colaboração da JBS. Antônio More/Arquivo/Gazeta do Povo
Há quem aprove e há quem torça o nariz, mas o fato é que os acordos de colaboração premiada estão cada vez mais inseridos no direito penal brasileiro. Só na Lava Jato o Ministério Público Federal (MPF) confirma oficialmente 158 acordos com investigados no Paraná, Brasília e Rio de Janeiro.
Apesar de amplamente utilizado na Lava Jato, o instituto da delação enfrenta diversas críticas de advogados que atuam na operação. Entre as reclamações estão o suposto uso de prisões preventivas para o fechamento de acordos, a discrepância de benefícios, entre outros argumentos.
A colaboração premiada está prevista na Lei 12.850, de 2013. O texto traz especificações sobre a homologação, os direitos do colaborador, contrato de colaboração, entre outras definições, mas para os advogados que atuam na negociação dos acordos ainda há pontos que precisam de uma regulamentação mais clara. Para os especialistas ouvidos pela reportagem, a colaboração premiada ainda passa por uma fase de “laboratório” no país.
“Ele [o acordo] veio para ficar e melhor do que evitar o enfrentamento do instituto é regulamentar para dar segurança jurídica para o delator e para o delatado. Ou seja, regulamentar esse instituto é melhor do que se recusar o enfrentamento”, analisa o advogado Adriano Bretas, que atualmente negocia o acordo do ex-ministro Antônio Palocci, além de já ter atuado na defesa de outros colaboradores da Lava Jato.
O procurador do MPF e integrante da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Carlos Fernando Lima, discorda da necessidade de regulamentar o acordo. Para ele, a legislação existente já é suficiente para regular o instituto. “Não creio que haja uma necessidade de maior regulamentação do instituto. Fazemos acordos aqui no Paraná desde 2003 com resultados reconhecidos”, diz o procurador. “Os maiores problemas que são enfrentados são mais de boas práticas e comunicação dos acordos para a sociedade, mas isso será resolvido em parte com os manuais de atuação que estão sendo discutidos pela no Câmara Superior do MPF em Brasília”, completa Lima.
Direito subjetivo
Todos os advogados ouvidos pela reportagem são unânimes em pelo menos um ponto referente à colaboração: o acordo é um direito subjetivo dos investigados. “O indivíduo que quer colaborar só pode ter o acordo negado se ficar demonstrado que ele tem reserva mental ou que ele está mentindo”, opina Bretas.
O advogado Antônio Figueiredo Basto, responsável pelos acordos de réus como o doleiro Alberto Youssef, o executivo Júlio Camargo e o ex-senador Delcídio do Amaral, entre outros, critica o MPF por ser seletivo na hora de definir quem pode ou não firmar os acordos. “Esse é um problema extremamente grave, eu discordo totalmente da posição do MP nesse aspecto, acho que ela tem sido seletiva e nesse ponto invertendo a lei”, avalia.
“Se fosse direito, não seria acordo. Acordos pressupõem manifestações livres de vontade. É claro que o MPF não pode se negar a fazer um acordo sem que apresente um motivo de relevância pública. E eles são sempre explicitados quando negamos um acordo”, rebate o procurador do MPF. Para Lima, não é possível garantir a todos os investigados a possibilidade de firmar acordos de colaboração premiada, uma vez que essa prática estimularia ainda mais a corrupção, ao invés de combatê-la.
“Colaboração é feita para desbaratar uma organização criminosa. Dessa forma, sem que se possa atingir, mesmo potencialmente, esse objetivo, não há que se falar em acordo. E, em decorrência desse mesmo princípio, não é possível fazer acordos com todos, pois assim estaríamos incentivando o jogo contra a investigação. Ou seja, incentivaríamos o crime, pois todos poderiam se salvar se pegos posteriormente”, explica.
“O que não se pode é privilegiar grandes tubarões e punir os menores”, diz Basto. O advogado explica que, naturalmente, quem cometeu crimes maiores terá mais informações para dar e mais dinheiro para devolver. “Eu não quero acreditar que as coisas se resumam a pagamento, a monetização da liberdade, não foi pra isso que o instituto foi criado”, ressalta. Para ele, é importante criar uma base de proporcionalidade para os acordos.
Segundo Lima, a reparação dos danos através do pagamento de multas é secundário para o MPF na hora de firmar os acordos. “O importante é quantas pessoas serão descobertas, investigadas e processadas com sucesso dentro da organização criminosa. Esse efeito multiplicador, com o desbaratamento da organização criminosa, especialmente de suas cabeças, é o principal. Evidentemente que sempre se negocia a máxima reparação dos danos possíveis pelo colaborador, mas isso é secundário e não obrigatório”, defende o procurador.
Tributação
Ao firmar um acordo, em geral os investigados precisam reconhecer os crimes que praticaram, apontar outros responsáveis pelas irregularidades, trazer fatos novos para a investigação, devolver o produto do crime e pagar uma multa. Para a advogada Alessi Brandão, que atua junto com o advogado Beno Brandão na defesa de colaboradores como o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, da doleira Nelma Kodama e dos marqueteiros João Santana e Mônica Moura, uma questão urgente que precisa ser regulamentada nos acordos de colaboração é a tributação.
“O primeiro ponto que eu vejo como necessidade para ontem é a questão tributária. Para mim, isso vai acabar inviabilizando os acordos daqui um tempo”, afirma. Para Alessi, a dificuldade está na tributação do valor devolvido pelo investigado à Justiça. “Não adianta tomar tudo que a pessoa tem e jogar ela no mundo do crime de novo”, argumenta.
O advogado Marlus Arns de Oliveira, que atuou nos acordos dos executivos da Camargo Correa, Dalton Avancini e Eduardo Leite, concorda. “Hoje a gente tem um problema sério na colaboração, porque você resolve teu problema no criminal, mas não no cível”, explica.
Provas de corroboração
Para Bretas, outro ponto que precisa ser levado em consideração na hora de normatizar os acordos é a exigência de provas de corroboração. “A prova de corroboração é um requisito para que haja condenação do réu delatado. Para fechar um acordo não se exige prova de corroboração”, defende o advogado.
Para o advogado, o MPF não pode negar um acordo para investigados que não trazem provas. “O que está havendo muitas vezes é uma inversão do ônus, atribuindo-se ao colaborador o ônus de buscar essas provas. Claro que se ele trouxer, tanto melhor para ele porque o benefício vai ser calibrado muito generosamente. Agora, se ele não trouxer não se pode negar o acordo de colaboração”, critica Bretas.
Lima aponta que a apresentação de provas de corroboração não é obrigatório para celebrar os acordos, mas as colaborações também não podem ser embasadas apenas na palavra do colaborador. “Quanto mais provas ele apresentar, mais potencial de celebrar acordo ele terá. Se não houver possibilidade dessas provas, será necessário que aponte caminhos investigativos viáveis para que os fatos narrados sejam comprovados. Querer fazer acordo só com base na palavra, sem provas ou com poucas possibilidades de ser provada, só pode ser chicana, e a Justiça e o Ministério Público não são lugares para isso”, defende o procurador.
Fases do acordo
Os especialistas também defendem o estabelecimento de regras claras para as fases de negociação das colaborações. O ideal, segundo os advogados, seria o estabelecimento de limites e alcance dos acordos.
Para Bretas, é preciso estabelecer etapas que não podem ser revertidas durante a negociação. “Existem muitas idas e vindas. Isso coloca em xeque a segurança jurídica do jurisdicionado de um modo geral. A estipulação desses marcos temporais irreversíveis vai dar segurança jurídica para o colaborador”, defende.
“É um momento de reflexão sobre o instituto”, explica Oliveira. “Muita gente está defendendo modificações na própria lei para que se tenha situações mais claras de como vai se dar a negociação, quais os passos que essa negociação deve ter, para que nós tenhamos uma situação mais clara quanto aos benefícios que são concedidos”, completa.
Debate equilibrado
Muitos advogados contrários à colaboração premiada acabam deixando a defesa de clientes que mostram interesse na negociação dos acordos. A principal crítica que a Lava Jato recebe é o suposto uso de prisões preventivas para forçar investigados a firmar acordos de colaboração premiada. Segundo o MPF, porém, a informação não é verdadeira, uma vez que a maioria dos acordos é feito com investigados soltos.
“Grande parte dos acordos são feitos com réus soltos. Aliás, os melhores acordos são feitos com réus soltos, a maior prova disso é a JBS”, concorda Alessi. No acordo firmado com empresários da JBS, os executivos chegaram a receber o perdão judicial pelos crimes cometidos.
Para os advogados ouvidos pela Gazeta do Povo, a regulação dos acordos evitaria críticas e diminuiria a insegurança jurídica. “Essa é uma das questões que a gente precisa debater de uma forma mais equilibrada por parte dos operadores do direito, de uma forma menos apaixonada”, diz Bretas.
“Acho que as pessoas, ao invés de ficar criticando isso tudo, deviam trabalhar para aperfeiçoar”, diz Basto. “Você criticar advogado que faz ou não faz é bobagem, uma perda de tempo, esse discurso não vai trazer nada. Nós teríamos que trabalhar em conjunto para ver como aperfeiçoar esse sistema, como nós podemos melhorar isso tudo, sempre em prol de uma Justiça eficaz e garantida”, conclui o advogado.
Fonte: Gazeta do Povo